Recebi o desafio do meu professor de teatro de analisar uma
das melhores obras de William Shakespeare, Otelo. Mal sabia
eu onde estava me metendo quando aceitei esse desafio. Afinal, quem sou eu para
fazer uma análise crítica de Shakespeare? Antes de mais nada, é necessário
esclarecermos que Otelo é uma tragédia, um gênero teatral que costuma ter um
final trágico e acontecimentos fatais.
Sinopse
A peça conta a história de Otelo, um general militar negro
servindo o reino de Veneza e recém-casado com Desdêmona. Após ver que Otelo
promoveu Cássio ao posto de tenente, Iago, alferes de Otelo é tomado por inveja
e trama um plano para destruir a vida de todos por vingança.
Temas que perduram
por eras.
Robert McKee em “Story” dizia que uma boa história moldada
em estereótipos se limita demais ao cenário em que se constituem, enquanto
“histórias arquetípicas viajam” (MCKEE, Robert; 2006. p. 18). Ou seja, você
pode até escrever algo que se passa no século XVII, mas o que vai garantir se
sua obra transcenda as eras é a capacidade de usar o contexto histórico como
matéria-prima para temas profundos, criando personagens únicos que o público
encontrará sua própria humanidade neles independente da era.
Nesse ponto, Shakespeare era muito à frente de seu tempo, ou
melhor dizendo, sabia trabalhar temas relevantes à todas as eras. Podemos
garantir isso ao analisarmos os temas tratados em Otelo. A começar pela própria
questão do racismo e xenofobia. Otelo é um ótimo general reconhecido e admirado
por suas aventuras e conquistas. Porém, é insultado por Brabâncio quando este
descobre que sua filha, Desdêmona se casou com o general mouro, chegando a
afirmar que Otelo conquistou sua filha através de magia proibida referindo-se a ele como um animal.
Outra questão que é apresentada na obra e temos refletido
nos últimos dias é o sentimento de ciúme e possessividade em relacionamentos.
Quando Otelo é convencido pelo vilão Iago de que sua mulher está traindo-o com
seu tenente Cássio, o ciúme e a ideia de posse sobre Desdêmona o corrompe de
tal modo que, com o decorrer da história, seus amigos (e os leitores) não o
enxergam da mesma forma. A possessividade e a violência contra a própria mulher
por causa de ciúmes são temas tão atuais que temos visto recentemente na mídia
discussões sobre diversos crimes cometidos todos os anos no Brasil e no mundo.
Se, mesmo assim, os temas já citados não nos convencem de
que Shakespeare estava à frente de seu tempo, talvez um diálogo específico
entre Emília (esposa de Iago e serva de Desdêmona) e sua ama incentivando
Desdêmona a não ser tão submissa ao marido possa convencer-nos. Ou mesmo na última
cena do livro quando a serva é quem realmente desmascara o vilão ao se recusar
abaixar a cabeça para o marido, revelando os planos de Iago. Pode ser que Emília
não seja um dos maiores exemplos de discursos feministas na literatura, mas é
admirável pensar que no ano de 1603 Shakespeare já apresentava um leve discurso
feminista em suas obras.
O que surpreende é não apenas o fato desses temas
transcenderem as eras, como também a maneira como Shakespeare traz esses temas
à tona, alguns de modo mais sutil e outros mais nítidos, é inovador e criativo.
Vilão bem construído
Em toda a história o vilão é quase ou tão importante quanto
o protagonista. Um vilão bem construído move a história para frente e se torna inesquecível.
Em Otelo Shakespeare traz Iago, um vilão meticuloso e inteligente que sabe como
manipular àqueles à sua volta. Na verdade, as habilidades de Iago foi o que
mais me chamou a atenção na obra.
Suas artimanhas são tão bem construídas e elaboradas que em
diversos momentos da história eu me sentia sufocado com a ideia de que ele
estava prestes a conseguir tudo o que queria e ninguém desconfiava de sua
índole. Pelo contrário, todos ainda o elogiavam como homem honrado, sem
perceberem que caiam inocentemente em suas teias.
Iago sabe das fraquezas e forças de cada um de seus inimigos
e usa isso a seu favor. Ele sabe o quão humilhante é para um general como Otelo
se sua esposa o traísse com seu subordinado e consegue, com maestria plantar o
ciúme no coração do mouro. Ele também sabe das fraquezas de Cássio com bebidas
e astutamente consegue convencê-lo a beber mais a ponto de perder controle
sobre si antes de mandar Rodrigo provoca-lo.
Além de tudo, Iago representa essa competitividade por reconhecimento
em que somos brutalmente jogados. Competitividade esta que faz com que alguns
sintam-se injustiçados quando outra pessoa recebe aquela promoção que julgamos
merecer a nós. Iago acreditava ser mais merecedor do que Cássio do posto de
tenente e este só conseguiu a promoção por ser mais amigo de Otelo.
Apresentação e
aprofundamento dos personagens.
Em minha humilde opinião, Iago é tão importante nessa obra
que é através de suas artimanhas que Shakespeare apresenta tanto as temáticas
sociais que abordamos no subitem anterior como a personalidade e construção de
suas personagens. Syd Field diz que o “personagem é o que ele faz” (FIELD, Syd; 1982. p. 56). Através das situações colocadas por Iago em
seu plano mirabolante Shakespeare revela traços de seus personagens.
De primeira vista, por exemplo, julgamos Cássio como um
homem que trata bem as mulheres pelo modo como ele trata Desdêmona. Mas a
maneira como ele fala sobre Bianca para Iago revela que ele trata está de
maneira fútil, prometendo casar-se com ela sendo que tudo que procurava era
sexo. Iago sabe desse traço ambíguo em sua personalidade e usa isso para que
Cássio cante vantagem sobre Bianca de modo que pareça, para Otelo, de que
falavam de Desdêmona.
É através das situações que Shakespeare coloca à prova os
sentimentos mais íntimos de seus personagens. Otelo não parece nem um pouco
ciumento ou possessivo quando o vemos jurando amor à Desdêmona. Mas Iago traz a
público esses sentimentos no general ao plantar nele a semente da dúvida. E a
maneira como ele faz isso é um truque de mestre. Ao invés de simplesmente dizer
à Otelo que sua mulher está traindo-o cm seu melhor amigo e oficial subordinado
ele faz apenas um comentário quando vê os dois juntos: “Isso não está me
cheirando bem”. Isso é o suficiente para criar em Otelo a ideia de que existe
algo que Iago sabe e não pode contar.
Uma reflexão do
íntimo do ser humano
Uma obra deve explorar o íntimo do ser humano de forma
crítica. Provavelmente o que torna Otelo uma obra prima que transcende a
história é o fato de que ele não conta uma história que acontece no ano de
1603, mas sim utiliza desse cenário para trazer reflexões sobre o íntimo de
todo ser humano.
A partir do momento em que o ciúme nasce no coração de
Otelo, o general torna-se incapaz de ver as atitudes de sua esposa de outra
maneira senão como alguém que o trai. O simples fato dela ter perdido o lenço
que ele deu a ela (lenço que ele mesmo havia jogado no chão anteriormente) faz
com que ele acredite que ela deu o lenço para outro homem. E não é assim quando
alguém tem ciúmes? Enxergamos coisa onde não tem. Caçamos pelo em ovo.
Para um homem tão importante como Otelo, o orgulho é também
um ponto fraco. Seria inadmissível um homem tão poderoso ser traído pela esposa
e seu subordinado. O ciúme e o orgulho nos corrompem de tal forma que nos
tornamos agressivos e possessivos, causando mal aos outros à nossa volta.
Há muito mais que poderíamos falar dessa obra se a
analisarmos mais profundamente. Shakespeare consegue fugir dos clichês não
apenas no modo como aborda temas relevantes até hoje na sociedade, mas também
em como ele coloca essas discussões na história. A maneira como ele revela
características de seus personagens torna a história cada vez mais
surpreendente. O vilão Iago é tão bem trabalhado que provavelmente tomarei como
referência daqui para frente. A trama é trabalhada de tal forma que, como
leitores, ficamos envolvidos com os personagens com um leve sentimento de
impotência por vê-los caindo nas armadilhas do vilão sem podermos fazer nada.
Não duvido nada se a cada releitura dessa obra,
aprendêssemos algo novo sobre sotrytelling ou sobre o ser-humano em si.
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