O Oscar aconteceu no
último domingo, premiando os maiores filmes de 2017 e inicio de 2018. Infelizmente
meu favorito (três anúncios para um crime) não venceu. O premio de melhor
roteiro original esse ano foi para “Corra!” escrito por Jordan Peele.
Alguns amaram a premiação enquanto outros acreditam que Peele só foi
premiado por causa do politicamente correto ou por ele ser
negro falando sobre racismo. De fato Jordan Peele foi o primeiro negro a ganhar o Oscar de melhor roteiro original, mas acredito que dizer que ele só ganhou
por ser negro e por causa do politicamente correto é discriminar muito um
trabalho de ótima qualidade. Aliás, antes mesmo do Oscar, estava claro que a vitoria poderia ser de "Corra!" ja que ele também ganhou o premio de Roteiro Original pela WGA (Writers Guild of America)
Já deixo avisado que
esse artigo contem SPOILERS importantes do filme, então se você não assistiu ao
filme, recomendo que só leia o artigo após saber o que acontece.
Seu filho quer ser preto? Há! Que ironia.
Já comentei no outro
artigo sobre esse filme como Peele utiliza os elementos racistas para aumentar
a angústia e desconforto no espectador. Também falei que o racismo mostrado no
filme não é aquele racismo agressivo agressivo contra negros, mas aquele tipo de racismo
disfarçado de não racista com comentários elogiando atletas negros e dizendo
que votariam no Obama pela terceira vez.
Há um diálogo entre Dean,
o pai da namorada e Chris enquanto olham uma foto do avô de Rose em uma pista
de corrida:
DEAN (CONT’D)
Oh você vai gostar disso. O momento de fama do meu pai. Ele foi
derrotado por Jesse Owens na rodada qualificatória para as Olimpíadas de Berlin
em 36. Foi aquela que--
CHRIS
--Owens venceu na frente de Hitler.
DEAN
Fala
sobre um momento perfeito na história. Lá está Hitler em seu trono com sua raça
ariana perfeita, e então vem esse cara negro provar que ele está errado na
frente do mundo todo. Que momento.
CHRIS
Um
momento difícil para seu pai, no entanto.
DEAN
Ele quase superou.
Dean pisca.
Esses “elogios” acontecem o momento inteiro durante a festa. Com o tempo vamos entendendo os motivos reais desses elogios. Eles não estavam apenas elogiando uma pessoa, mas avaliando o “produto” (Chris) que eles iriam adquirir.
Inicialmente pensamos
que eles sequestravam negros por que as autoridades não se preocupam tanto com
um negro desaparecido. Mas durante a festa e, posteriormente no filme,
percebemos que suas intenções são, de fato, tornarem-se negros. Por que eles
querem se tornar negros? Voltemos ao diálogo entre Dean e Chris logo acima. Ao
contrário de Hitler, eles acreditam que os negros são superiores: mais fortes,
mais saudáveis, mais resistentes. Ou como alguns deles dizem: “Preto está na
moda”
Há um diálogo durante a
festa em que Hiroki,
um amigo da família pergunta a Chris se ele acha que um afro-americano tem mais
vantagens ou desvantagens no mundo moderno. Isso revela o tipo de visão
política que essas pessoas tem. Eles pertencem àquele tipo de gente que
acredita que os negros e minorias atualmente tem muito mais privilégios e
facilidades que os demais por serem negros.
São aquelas pessoas que
acreditam que os negros tem vantagens nas universidades por causa da cota, ou
que negros são eleitos por serem negros, ou que roteiros ganham o Oscar por ter
sido escrito por um negro. Eles querem se tornar negros para
desfrutar desses “privilégios” que eles enxergam, ou seja, para desfrutar das “vantagens”
de ser negro na atualidade.
Desenvolvimento dos personagens
Em “Corra” os personagens não parecem evoluir muito. Na verdade eles se revelam com o tempo. E essa revelação acontece aos poucos, seguindo um fluxo constante, não acontece uma transformação súbita, além de Rose que se revela radicalmente no final do segundo ato ou seu irmão que é hostil logo de inicio.
A hostilidade e a
verdadeira face dos vilões se revelam aos poucos, em detalhes, seguindo o
aumento da tensão provocada pelo filme. O que, em um primeiro momento, se
revela uma família acolhedora e amável, se torna, aos poucos, hostil e
desconfortável. Nós vemos essa transformação acontecendo gradualmente, sem
grandes pulos nas personalidades.
Quanto ao protagonista já
temos uma transformação psicológica. Ele tem um trauma em sua vida por ter
deixado a mãe morrer quando era uma criança. Sente-se culpado por ter
abandonado a mãe. E isso reflete em sua personalidade de não querer abandonar a
namorada ali quando percebe que é melhor partir. Ele se agarra à imagem de que
sua namorada é boa, mesmo depois de encontrar provas de que ela não é. Ele se
recusa a abandonar outra mulher importante para ele.
Sua transformação psicológica
acontece gradativamente conforme a tensão aumenta e as facetas dos vilões se
revelam. No inicio, Chris sabe lidar com o racismo. Vemos isso na cena em que o
policial pede para ver sua identidade. Enquanto Rose fica intrigada, Chris age
com tranquilidade. No entanto, sua paranóia aumenta gradativamente a ponto dele
perder, aos poucos, essa tranquilidade dando espaço para a paranóia. A mudança
é tanta que, no final, quando um carro da policia se aproxima, ele fica tenso,
com medo diferente de como ele se comportou no inicio do filme, afinal ele já imagina
que será incriminado pelos assassinatos ao invés de resgatado de uma família de
psicopatas.
Outra transformação no
protagonista é em relação à sua hostilidade com os inimigos. Chris é um cara
calmo que não se deixa levar pelas provocações. Vemos isso em suas interações
com Jeremy, irmão de Rose. Jeremy provoca Chris desde o primeiro momento, mas
Chris não cai nessas provocações, recusando-se a lutar com Jeremy. Suas
atitudes são pacificas, preferindo o diálogo à violência.
Já no final, após todo
o trauma, Chris simplesmente parte para o ataque, em busca da liberdade.
Atacando e matando todos que encontra em sua frente. Ele percebeu que com
alguns tipos de racistas o dialogo não é uma opção. Ele já não se preocupa mais
com a namorada, priorizando sua liberdade ao invés de levá-la consigo, afinal já
sabemos que ela estava por trás de tudo.
Análise técnica do roteiro
Além desses elementos, o roteiro de Peele é limpo e bem escrito. A maneira como as cenas são descritas torna fácil o entendimento e é uma leitura confortável. Nos parágrafos descritivos Jordan apresenta bem os personagens através de coisas simples como quando ele mostra Chris olhando pela janela com uma câmera profissional e logo após ele passa pelo display da câmera vendo várias fotos de cenários urbanos como nas paredes pelo seu apartamento.
Tudo isso é descrito
claramente no roteiro, sem confusão e mostram aspectos do personagens sem a
necessidade de falar para o público que Chris é um fotógrafo que admira fotos
de cenários urbanos.
É interessante que,
diferente de muitos outros roteiros, Peele não usa muito de verbos na primeira
pessoa do plural para narrar a história. Digo isso, pois vejo em muitos
roteiros frases como “vemos FULANO, olhando pela janela através de uma câmera”
ou “ouvimos um chuveiro ligado”. Ao invés disso, Peele narra de forma literária
e simples como “Chris olha pela janela através de uma câmera profissional” ou “um
chuveiro está ligado”. Ainda que há a presença de termos com “caminhamos
lentamente pelo apartamento” esses termos são raros se comparados com outros
roteiros.
Já nos diálogos vemos
um domínio de Peele em diferentes linguagens e dialetos. Os diálogos de Chris e
Rod são cheios de uma linguagem característica de negros da área urbana
enquanto os diálogos dos familiares são mais sofisticados, característicos da
alta classe. Inclusive quando Peele apresenta Dean ele diz que ele é o tipo de
cara que pronuncia “garbage”, ‘garbahge”. Ele toma cuidado para deixar claro
qual é o sotaque, vícios de linguagem e maneira de falar dos personagens para
definir as diferenças culturais entre eles.
Vale observar o diálogo
entre Chris e André em seu primeiro contato. Peele deixa claro que a linguagem
corporal e verbal de André é diferente da que ele possuía na primeira cena do
filme.
Todos esses elementos
são bem descritos no roteiro, sem invadir o trabalho do diretor ou dos atores,
na verdade, facilitam o trabalho da equipe. É comum vermos anotações assim em
roteiros para facilitar a compreensão da equipe, mas geralmente em versões técnicas
feitas após a decupagem. Já no roteiro de Peele, é possível entender o que o
roteirista planejava sem a necessidade de uma decupagem muito elaborada.
Pode parecer algo
irrelevante, mas é interessante quando observamos que o roteirista também é o
diretor, logo, não era necessário ser tão preciso nas descrições, já que o
próprio Peele iria dirigir. Honestamente, quando li o roteiro de “Corra!” senti
lendo um roteiro com descrições semelhantes a um romance, mas sem perder as
características de um roteiro de cinema.
O roteiro escrito por
Peele é atrativo e ao mesmo tempo cheio de detalhes. Contudo, esses detalhes
não atrapalha na experiência da leitura, sendo possível compreender as
intenções do autor e ao mesmo tempo se envolver na trama. Em resumo é um roteiro leve, simples e gostoso de ler sem se tornar cansativo. E por isso que apesar do meu favorito não ter ganho o prêmio, acredito que a premiação foi justa.
Caso você tenha interesse, pode baixar e ler o roteiro de "Corra!" clicando aqui. Quero agradecer ao grupo Roteiristas Independentes, ja que boa parte das observações presentes nesse artigo foram desenvolvidas nas discussões com os excelentes membros do grupo.
Caso você tenha interesse, pode baixar e ler o roteiro de "Corra!" clicando aqui. Quero agradecer ao grupo Roteiristas Independentes, ja que boa parte das observações presentes nesse artigo foram desenvolvidas nas discussões com os excelentes membros do grupo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário